quinta-feira, 12 de março de 2009

Sedevacantismo refutado? (Parte II)

Dizem os opositores do sedevacantismo que a bula "Cum Ex Apostolatus" foi em sua essência mitigada ou mesmo contraditada pelas disposições doutrinais de seu sucessor, o papa Pio IV – dado que o mesmo teria defendido em documentos referentes à eleição papal que "ninguém pode ser excluído da eleição sob pretexto de que está excomungado ou incorreu em alguma censura" e ainda "publicou uma declaração segundo a qual todos os que haviam incorrido em alguma censura, em excomunhão ou outra condenação por causa de heresia podiam submeter outra vez sua causa a uma nova averiguação judicial, não obstante todas as sentenças de seus predecessores" – bem como posteriormente "foi ab-rogada (sic) pelo Código de Direito Canônico (1917), incorporando-se a este parte do que aquela legislava". Assim, a bula tão citada pelos católicos que guardam a posição sedevacantista é considerada apenas uma fonte histórica de relevância, apenas, mas não pode ser tida como fundamento para a defesa doutrinal da inelegibilidade de um herético para o pontificado.

Responderemos uma a uma tais questões, demonstrando aonde existem os vácuos e lacunas argumentativas, bem como os saltos indutivos impróprios e embasados apenas em ignorância acerca daquilo que nos ensina a fé católica.

Há de se retomar agora também a distinção dos dois tipos de impedimento anteriormente mencionados: os provenientes de direito divino e os provenientes meramente de direito eclesiástico. E porquê? Pois essa mesma distinção está nos textos da Igreja: há documentos de cunho doutrinal, outros de cunho disciplinar. Mas em muitos dos textos da Igreja há também uma mistura dessas duas características, contendo ora partes de matéria disciplinar que é passível de mudança, ora contendo partes de ensinamentos doutrinários, que não são passíveis de serem mudados. Essa distinção é fundamental para que compreendamos posteriormente o caráter atual da bula "Cum Ex Apostolatus", de Paulo IV.

Ora, de acordo com nossos opositores, há uma afirmação de Pio IV que contradiria a bula de Paulo IV. Mas será isso verdade? Vemos francamente que não.

Em primeiro lugar, lembremo-nos que o documento de Pio IV - a constituição "In Elegendis" - é a fonte citada para o argumento de nossos opositores (já anteriormente refutado na primeira parte deste artigo) e que esta é baseada nas disposições originais da constituição "Ne Romani" (estabelecida durante o Concílio de Viena), de Clemente V. São as constituições de Pio IV e de Clemente V também dois dos vários textos-base dos documentos "Vacante Apostolica Sede", de São Pio X; e da "Vacantis Apostolicae Sedis" de Pio XII - ambos tratando das normas a serem aplicadas quando da vacância da sé apostólica de São Pedro.

Esses textos, por sua vez, deixam bastante claro qual é o significado da suspensão das excomunhões: quaisquer censuras – ressalvamos novamente – eclesiásticas estão suspensas durante o conclave. Verifiquemos agora excertos significativos da "Vacante Apostolica Sede", §29: "Nullus Cardinalium, cuiuslibet excommunicationis, suspensionis, interdicti aut alius ecclesiastici impedimenti praetextu vel causa a Summi Pontificis electione activa et passiva excludi ullo modo potest; quaas quidem censuras et excommunieationes ad effeetum huiusmodi electionis tantum, illis alias in suo robore permansuris, suspendimus" ; e da "Vacantis Apostolicae Sedis", §34: "Nullus Cardinalium, cuiuslibet excommunicationis, suspensionis, interdicti aut alius ecclesiastici impedimenti praetextu vel causa a Summi Pontificis eleetione attiva et passiva exeludi ullo modo potest; quas quidem censuras ad effetram huiusmodi electionis tarituro, illis alias in suo robore permansuris, suspendimus".

Segundo as constituições "In Elegendis" e "Ne Romani", também as medidas disciplinares da suspensão das excomunhões de direito eclesiástico são de caráter francamente interno ao da Igreja Católica. Isto é perceptível ao atentarmo-nos ao texto de ambos documentos, que com cristalina com cristalina evidência manifestam qual a razão para se suspender as excomunhões eclesiásticas: evitar cismas e divisões no seio da Igreja Católica. Dizem os textos: "Et ne dissensionis occasio aut schismatis oriatur(...)" ("In Elegendis" §29); e também: "Ceterum, ut circa electionem praedictam eo magis vitentur dissensiones et schismata(...)" ("Ne Romani" §4).

Cismas, logicamente, só podem partir de dentro da Igreja. Donde, quem está fora da Igreja por impedimento de Direito Divino – como um apóstata ou herege público – sequer pode ser considerado como referenciado nessas constituições, dado que eles já não mais possuem o caráter de membros da Igreja. É absurdo presumir coerência quando a espécie "membro principal da Igreja" (ou seja, o papa) não pertença ao gênero de "membro da Igreja". Ou seja: como podem argumentar nossos opositores que a Igreja fala da suspensão unilateral de quaisquer tipos de excomungados (um tipo de "reitegração temporária forçada" à unidade católica) sendo que ela mesma não pode levantar alguns tipos de excomunhões latae sententiae sem a colaboração dos penalizados? Nesses casos, no máximo, a Santa Madre Igreja declara estarem as excomunhões de fato e praticamente já levantadas pelo próprio arrependimento ou conversão do penalizado, e não por uma pretensa ação jurídica da Igreja que seria capaz de mudar por decreto a vontade e a crença de um herege, reintegrando-o na marra ao Corpo Místico.

Reflitamos mais um pouco na concretização da possibilidade defendida por essa desviada pantomima da fé católica, isto é, a eleição de um candidato herege ao sumo pontificado. Façamos uma "reductio ad absurdum". Dado que as disposições do direito eclesiástico afirmam que as excomunhões seriam suspensas apenas durante o conclave para efeitos de eleição passiva e ativa, como agiriam nossos opositores se, após o conclave, fosse eleito um "papa" cuja pena de excomunhão por heresia foi suspensa e novamente a mesma recaísse no sujeito eleito, logo após o fim do conclave? Teríamos ou um papa imediatamente "excomungado" – e a sé ficaria vacante novamente em virtude do cânone 188 §4 do Código de Direito Canônico (CDC) de 1917, ou um "papa herege explícito", obrigando em consciência todos os católicos se submeterem sob a pena de NÃO SEREM SALVOS (cf. Papa Bonifácio VIII, na "Unam Sanctam": "Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao romano pontífice.") a um homem que já defeccionou explicitamente da fé?

Em qualquer um dos casos, teríamos uma estupidez sem precedentes. Dado que as leis deveriam ser, em primeiro lugar, disposições de ordem racional visando o bem comum de uma sociedade, é inadmissível conceber quaisquer dessas opções exdrúxulas como viáveis para um católico.

Se fossem verdadeiras as aberrantes teses de nossos oponentes, a Igreja seria – falemos como néscios – no mínimo muito insensata ao, durante toda a tecitura da História, não ter levantado todas as excomunhões de todos os hereges! Afinal, decretando-se que todos os hereges não estão mais excomungados (e pressupondo sempre a indefectibilidade da Igreja), ipso facto, os mesmos passariam a acreditar em tudo o que a Igreja ensina.

Haja "pensamento mágico"...

Fica assim à mostra que é da fulgaz incompreensão do documento de Pio IV que se cria o artifício para advogar a invalidade de uma argumentação sedevacantista fundamentada na bula "Cum Ex Apostolatus".

Outro erro de nossos opositores está na desacertada classificação da bula, pois consideram que a mesma estaria dentro daquela categoria de documentos que o direito canônico chama "ab-rogados". Porém, é impossível que tal documento seja totalmente ab-rogado, porque ele contém disposições de Direito Divino acerca do poder de jurisdição eclesiástica dos hereges (cf. citações anteriores da primeira parte deste artigo; cf. artigo 6º do CDC de 1917). Isso significa que mesmo todo o resto da bula fosse extirpado, essa parte jamais poderia sê-la – pois se admitissem isso nossos opositores, os mesmos admitiriam também que as coisas de Direito Divino poderiam ser alteradas pelas disposições da Igreja, coisa já francamente condenada no passado pelo Magistério Católico (cf. Papa Pio IX, Denzinger-Hünermann 3114). Sendo assim, é evidente que a bula não foi ab-rogada – isto é, perdeu toda a sua efetividade em todos os seus conteúdos – mas sim derrogada – isto é, perdeu sua efetividade apenas em alguns dos seus conteúdos; pois é impossível que o Direito Divino perca a sua efetividade.

É importante ressalvar, por motivo de justiça, que a bula perdeu seu poder relativo às disposições que não foram incorporadas no CDC de 1917. O estabelecimento de regras de vacância para autoridades de jurisdição política, por exemplo, os cargos de conde, barão, marquês, rei e imperador que são nominalmente citados na bula, estão revogados pela força do artigo 6, §6 do CDC de 1917, que diz: "Se alguma das demais leis que até agora se tinham como vigentes não se contém nem explícita nem implicitamente no Código, há de afirmar-se delas que perderam todo o seu valor, a não ser que se encontrem em livros litúrgicos aprovados ou são leis de direito divino, seja positivo ou natural."
Mas como dizer o mesmo das disposições concernentes à vacância dos cargos de homens heréticos? No cânone 188,§4 e no cânone 2314,§1 e §3, temos a incorporação das normas disciplinares da Bula de Paulo IV. Direito Divino aí aplicado, com "validade perpétua" – para repetir as frases de Sua Santidade, Giovanni Pietro Carrafa, o papa autor da bula "Cum Ex Apostolatus".

Continunando a nossa exposição das inverdades apresentadas pelos nossos oponentes, um terceiro erro seria considerar que o novo julgamento dos condenados em processos inquisitoriais pelo papa Paulo IV seria uma demonstração cabal de que as normas baixadas pela "Cum Ex Apostolatus" eram completamente relativas, meramente eclesiásticas e, por isso mesmo, absolutamente dispensáveis se assim outro papa quisesse.

Diz o teólogo sedevacantista Homero de Oliveira Johas acerca desse assunto algo bastante esclarecedor: "Supondo ser verdadeiro o que Pe. Ceriani diz sobre Pio V(...), nada mudaria na [validade da] bula de Paulo IV. A aplicação justa de uma lei universal ao caso singular, por sentença 'ab homine', não é o caso da vacância 'ipso facto' da Bula. E, mesmo em sentença nominal, se um juiz aplicou injustamente uma pena a um caso singular, isso em nada altera a lei a ser aplicada justamente. O Pe. Ceriani, entretanto, insinua que a própria lei em si, a 'definição' é injusta, o que é insubmissão contra a lei de Deus e da Igreja, além de ser contradição: [dado que] ele mesmo afirma que São Pio V, em outra bula* repetiu as normas de Paulo IV (Bula* "Inter Multiplices") Logo, a alegação é inepta, tendenciosa, sofística." (cf. Revista Roma, nº 122 – 1992; * Na verdade, não é uma bula, mas sim uma carta 'motu próprio'). Noutros termos, poderíamos usar aqui o famoso adágio "o abuso não condena o uso". Que querem os opositores do sedevacantismo? Querem que admitamos que revisão das condenações por heresia seja uma condenação do próprio critério utilizado para serem condenados os heréticos, bem como para os mesmos sofrerem as conseqüências da heresia. Ora, se a base para esse salto indutivo era a possibilidade dos condenados por heresia se submeterem a uma nova inquisição judicial acerca da heresia por causa da qual eles tinham sido condenados, estamos completamente certos de que tal conclusão – confrontada com a esclarecedora exposição proveniente do artigo de H.Johas acima – não vale nada.

Enfim, esquadrinhando a essência das teses dos opositores do sedevacantismo, observamos que elas não são tão bem enraizadas quanto eles gostam de fazer acreditar os incautos. Pelo contrário, erram inclusive em pontos que deveriam ser entendidos por todos os católicos, desde os tempos de suas primeiras aulas de catequese.
No entanto, a imprudência desses senhores é grande: condenam o que desconhecem e desconhecem o que condenam. Preconceito, juízo temerário, precipitação. Para tais pessoas, tão grande é a cegueira preconceituosa na qual se encontram, mas realmente tão grande, que aos poucos dão, espantosamente, um novo significado à expressão "ignorância invencível"...

Que Deus nos ajude a sempre permanecermos fiéis à verdade.

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