sábado, 9 de maio de 2009

A DEFESA DA IGREJA HERETICISTA - parte II

b) Juízo de autoridade e juízo de razão

Diz o teólogo: a) São Paulo não julgou a Pedro no que concerne a sua autoridade de regime; b) nem um papa pode julgar outro papa; c) Cristo não julgou que seriam hereges os últimos papas.

Agora bem: a) São Paulo não julgou a Pedro "in auctoritate regiminis" como Superior. Mas julgou a Pedro em matéria de fé, [naquilo que era referente à] "verdade do Evangelho". Logo, é falso o sentido da "imunidade judicial"(p. 11). O "cum vidissem quod non recte ambularent ad veritatem Evangelii" é um juízo de Paulo sobre os atos de um papa em matéria de fé, ainda que Pedro não tenha sido herético, senão um simples errante acidental, por falta de intenção e de obstinação no erro (Gal 2,14). Logo, a exegese do teólogo vai contra São Tomás(p. 15) e os Evangelhos.

São Paulo mesmo ensina: "Quem os conturba, quem quer que seja, será julgado". (Gal 5,10). Em caso de delito contra a fé, ordena ao anátema incluso aos superiores (os anjos) ou iguais (os Apóstolos) (Gal 1,8-9). Ele mostra duas resistências: uma lícita, em matéria de fé: "in faciem ei restiti" (Gal 2,11), e outra ilícita, em matéria disciplinar: "qui resistit potestati, Dei ordinatione resistit" (Rom 13,2). Os prelados, com o pretexto de não julgarem um papa "errante", não julgam o herege mas sim o julgam em matéria disciplinar, considerando ao herético um papa verdadeiro e "válido".

É falso o item b) que um papa não pode julgar outro papa, seu predecessor, por delito contra a fé. O teólogo vai aí contra o Magistério da Igreja, alegando que o Direito Canônico (sic) e a Tradição não o permitem dado que "par in parem potestatem non habet" (p.12).

Mas vejamos que São Tomás mostra que São Paulo, em Gálatas 1,8-9, mostrou o dever de julgar e anatematizar "etiam in pares"; "também contra os iguais como são os apóstolos", e mesmo contra os superiores(Comentário Gal; cap 3, n.3ss). Nosso "teólogo" então se faz juiz de São Leão II, como já o fizeram também os membros da Fraternidade (cf. "Sim, Sim, Não, Não"; 15/11/88), julgando ao pontífice como "injusto" e "censurável", "não menos que Honório I". Quanta infidelidade!

É falso o item c), que [diz que] Cristo não tenha julgado os papas que sejam hereges (p.12). Veremos adiante como Inocêncio III faz uma exegese do Direito Divino: "Quem não crê já está condenado" (Jo 3,18). E São Paulo completa: "dado que está condenado por seu próprio juízo" (Tit 3,10). Logo, a exegese do "teólogo" da Fraternidade não é a da Igreja.

C. Destruição da Tradição e do Magistério Católico - O "tradicionalista" procura destruir as doutrinas de papas e os fatos da condenação de papas como hereges ou como cismáticos , por juízos particulares ou por Concílios da Igreja. Não é esse o caminho católico. Não defende a Tradição.

a) Magistério Doutrinário sobre o direito de julgar um papa

I. Sermão de Inocêncio III ("in Consecratione Pontificis" P.L. t.27, col.656-672)

O sacerdote cita uma exegese de Billot sobre esse sermão (p.11) sem dizer entretanto que Billot aí seguia outra exegese de Bellarmino sobre a Oração de Cristo por Pedro, que neste caso o Santo Doutor deu como "incerta" nessa época e que, de fato, não foi confirmada pelo Vaticano I. Não tem valor a criteriologia da fé contrapor Billot a Inocêncio III e ao Vaticano I. O grande Pontífice medieval faz nesse sermão a mesma exegese da Oração de Cristo que posteriormente fará o Vaticano I: restringe os efeitos da Oração de Cristo à infalibilidade papal em quanto cargo papal, não enquanto à pessoa sem o magistério supremo. Eis aqui o texto relativo ao cargo e à Oração de Cristo:
"A não ser que estivesse consolidado na fé, como poderia consolidar aos demais? O Que é sabido pertencer principalmente ao meu cargo (ad officium meum), pelo testemunho do Senhor: "Orei para que tua fé não desfaleça..." (Lc 22) (...). Por tanto, a fé da Sede Apostólica (fides Apostolicae Sedis) jamais desfaleceu em nenhuma turbação, mas permaneceu íntegra e incólume para que o privilégio de Pedro (Petri privilegium) permanecesse inquebrantável."

Eis aí a exegese da Oração de Cristo, É a que o Vaticano I confirmou. Ela contradiz a Igreja "pecadora" e "imperfeita" de Mons.Lefebvre e dos hereticistas. Logo segue o texto atinente à pessoa do papa. Convém citá-lo no original:
"In tantum enim fides mihi necessária est ut, cum de caeteris peccatis solum Deum iudicem habeam, propter solum Deum iudicem habeam, propter solum peccatum quod in fide committitur, possem ab Ecclesia iudicari. Nam, qui non credit, iam iudicatus est (Joan. 3). Credo quidem et certissime credo quod catholice credam, confidens quod fides mea debeat me salvare..." (Efeitivamente, a fé me é de tal modo necessária que, enquanto com relação aos outros pecados somente a Deus tenho como juiz, unicamente no pecado em que se comete em matéria de fé eu poderia ser julgado pela Igreja. Pois quem não crê já está julgado (João 3). Creio, é certo, e certamente creio que crerei catolicamente, confiando que minha fé me há de salvar...)
No mesmo sermão todavia, diz mais adiante:

"Potest [Pontifex] ab hominus iudicare vel potius iudicatus ostendi si videlicet evanescat in haeresim, quoniam qui non credit iam iudicatus ets" (O Pontífice pode ser julgado pelos homens, ou melhor, ser mostrado como já julgado, a saber, se se corrompe na heresia, porque quem não crê já está julgado).
Portanto, ali o Pontífice se refere a si mesmo como pessoa privada (mihi, me) capaz de salvar-se ou perder-se por delito contra a fé. Isso, por tanto, não se refere à infalibilidade do papa enquanto papa. Diz com precisão a matéria do delito no qual pode ser julgado: "in fide", e nos quais não pode sê-lo: "In caeteris peccatis". Eis aí a contradição do agir dos lefebvreanos que não julgam "in fide" e julgam sobre a "justiça" do papa.

A palavra de Billot, neste caso, é algo de tal maneira "leviter dictum" que nos faz suspeitar se sequer o teólogo teria lido o texto integral; por meio dele, ele(o teólogo) converteu o sermão em favor da opinião "extensiva" sobre os efeitos da Oração de Cristo: Inocêncio III havia aludido ao pecado contra a fé como uma "hipótese impossível", "si per impossibilem" isso acontecesse.

Vejamos bem; tal exegese contradiz os contextos internos: não necessitaria o papa provar a "necessidade da fé para si mesmo" se julgasse impossível perdê-la enquanto pessoa. A impossibilidade seria relativa ao cargo e a esta já havia sido provada pela Oração de Cristo. Não se nivelaria com os demais afirmando que "quem não crê já está condenado", se a infalibilidade do cargo fosse assegurada somente de modo condicional, o que vai contra a fé. A possibilidade de "iudicari ab Ecclesia" seria uma possibilidade contra o dogma que nega que a sede de Pedro possa ser julgada na Terra. Por conseguinte, esse juízo está pendente somente ao fato do delito (ipso facto) e à matéria do delito (in fide). O próprio sermão expõe pela segunda vez a causa da possibilidade de tal julgamento "ab hominibus" e a natureza de tal juízo pelo Direito Divino: "ser manifesto como julgado" (ostendi iudicatus) se "desfalecer na fé". Como se diz em outra parte: "Non potest exui iam nudatus": quem já está nu não pode ser desnudado.

Tal exegese contradiz também aos contextos externos que antes e depois de Inocêncio III exibem a mesma doutrina desde o século VI até Alexandre VII em 1665. E os atos da Igreja a supõe desde os remotos séculos do arianismo.


II. O Concílio Romano do ano 503

Há muitos séculos antes, este Concílio, ao tratar sobre a ortodoxia de São Símaco, traía a cláusula restritiva sobre o não julgamento do papa: "nisi a recta fide exorbitaverit" (Harduinus, t.2, col.984). "Cette doctrine ut recue et confirmée par tout lê Mouyen âge" (Dic. De Théol. Catholique: La Déposition des Papes, col.519).

Nas atas do VIII Concílio de Constantinopla, o papa Adriano II recorda a doutrina do não-julgamento de um papa, mas considera a exceção:
"É verdade que Honório, depois de sua morte, foi anatematizado pelos
Orientais, mas é necessário não esquecer que foi acusado de heresia, único crime que torna legítima a resistência dos inferiores para com os superiores, assim como o rechaço de suas doutrinas perniciosas"
(Alloc. III lecta in VIII Concilio, Act.7 – Harduinus, t.5, col.866)
E na profissão de Fé desse VIII Concílio, se pronunciava um novo "anathematizamus" contra Honório I. Bellarmino mesmo afirma que não é menos verdade que Adriano (II), com o Sínodo Romano e com o VIII Concílio geral inteiro entendia que se podia julgar ao Romano Pontífice em caso de heresia (De.Rom.Pontif., 1.2, c.30, p.418). São Yves de Chartres recorda esta doutrina ao Arcebispo de Lyon.

III. O Decreto de Graciano
Graciano, monge, recolheu (em 1140 ou 1150) 78 decretos papais, 105 cânones conciliares e 50 cânones apostólicos. Gregório XIII os reordenou. Eram bem conhecidos pelos canonistas dos séculos XII e XIII os dois cânones referentes ao papa herege:

Cânon Si Papa: "Que nenhum mortal pretenda acusar ao papa de falta, pois dado que a ele incumbido é julgar todos os homens, ninguém deveria julgá-lo, a menos que se aparte da fé" (P.L. Dist.40, c.6)
Atribuído a São Bonifácio, Arcebispo de Maguncia, é citado pelo cardeal Deusdedit falecido em 1087 e também por São Yves de Chartres:

"Hujus [papae] culpas istic redarguere praesumat nullus, quia cunctos ipse iudicaturus, a nemine est iudicandus, nisi deprehendatur a fide devius" (Decretum V,23 – Pars I, Dist.XL,c.6)
Outro Cânon de Graciano tem o mesmo sentido: um papa herege está destituído do cargo (Cap. Oves, C.13, c.2, q.7).

O tradicionalista se alça contra a Tradição: "Deve ser apócrifo" (p.12) em quanto a cláusula restritiva. "Não tem autoridade intrínseca" (p.12). Não formou parte das leis da Igreja, ou se o foi, foi abrogado pelo Direito Canônico de 1917, pois o Cânon 1556 não cita essa cláusula e o Cânon 6 abroga o que não é citado (p.11).

Agora bem, alguns "teólogos" pensam defender suas opiniões levantando suspeitas gratuitas contra os documentos históricos que se opõem a eles. Desse modo, se pode destruir toda a história da Igreja. É inepto negar "autoridade intrínseca" aos cânones porque Graciano é um simples monge. Dos documentos do Denzinger têm "autoridade intrínseca" pela fonte de onde eles provém. Se Graciano recolheu os documentos do Magistério e da Tradição, têm [os cânones] a autoridade deles [dos documentos do Magistério]. E a alternativa colocada pelo lefebvrista mostra a gratuidade das suas acusações. E a superficialidade da argumentação o faz "abrogar" o Direito Divino, subtraindo do Cânon 6 a exceção: "nisi sit iuris divini". Já vimos como Inocêncio III prova que o é [de direito divino] (Jo 3,18). E o Direito Canônico não trata diretamente do papa, senão universalmente dos cargos "constituídos por natureza divina ou humana". (Canon 145). E o cânone 188 n.4 é a cláusula restritiva.

Logo, quando fala de "qualquer cargo" (Cânon 188 n.4), forçosamente inclui o cargo papal. E a cláusula é também universalmente estendida "em quanto aos direitos" de qualquer "pessoa", dentro da Igreja. Elas existem "a não ser que obste algum óbice que impeça o vínculo da comunhão eclesiástica". (Cânon 87). Portanto, nosso canonista lefebvreano vai contra o Direito Divino e contra o Direito Canônico, "abrogando" tudo livremente... Está acima do papa e de Deus!!

* * *

Não desiste, e invoca a exegese de Bellarmino sobre o Cânon. Agora bem, Bellarmino nesse tempo, contra a opinião comum se inclina para opinião "incerta" da extensão da infalibilidade papal à pessoa privada do papa. Portanto, esta exegese de Bellarmino está feita sobre este contexto que o Magistério do Concílio Vaticano I não confirmou. Não é lícito, conseqüentemente, invocá-la hoje. Segundo lemos em Bellarmino, o sentido do canon, nesse contexto, seria "não que o papa possa errar como pessoa privada, senão que ele não possa ser julgado porque não é certo que ele possa ser herege. Seria uma cláusula "ad cautelam": a não ser que seja herege" (Opera Omnia, Vives, t.2, 1.4, c.7, p.88).

Assim, esta exegese de Bellarmino é inadmissível não só por ser uma opinião superada sobre os efeitos da Oração de Cristo, senão também porque deixaria o dogma do não-julgamento de um papa pendente de uma condição incerta, o que está contra todo o Magistério da Igreja. E não pode o lefebvrista valer-se desse argumento, pois ensina "o dever de desobedecer" um papa por delitos em matéria de fé.

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A doutrina do Canon é a mesma do Concílio Romano de 503: "nisi a recta fide exorbitaverit"; é a mesma de Inocêncio III. "Ce principe est hors de doute", afirma o Dic. de Théol.Catholique. Mondeo escreve: "Uma tradição sólida no século VIII ensinava: um papa herege pode ser julgado por um Concílio" (La Dottrina Del Gaetano, pp. 25 e 164). Os canonistas dos séculos XII e XIII conheciam esses cânones. Yves de Chartres recorda estes cânones ao Arcebispo de Lyon, João. E o mesmo repete essa doutrina no caso de Pascoal II: "Não desejamos privar de seu poder das chaves principais da Igreja, quem quer que se sente na Sé de Pedro, a menos que se aparte manifestamente da verdade do Evangelho" (P.L. t.162, col.240).

É uma contradição de Mons. Lefebvre falar da "linha do realismo" para ver os fatos atuais dos papas, sem "fechar os olhos", mas fechando-os para os cânones da Igreja que estabelecem a vacância hoje, e nos séculos passados. A Lei da Igreja não é "opinião". O Magistério de Alexandre VII não é opinião (D.S. 2025).


IV. Paulo IV: Bula "Cum Ex Apostolatus Officio"
Esta Bula confirma indiscutivelmente a Tradição Católica sobre o fato de que "Prima Sedes a nemine iudicatur" e sobre o "caso único" (Adriano II) de exceção a esse princípio de Direito Divino.

A Bula ensina que o Romano Pontífice , que "omnes iudicat, a nemine in hoc saeculo iudicandus, possit, si deprehendatur a fide devius redargui". Confirma pois, o Decreto de Graciano e a exegese de Inocêncio III e o Sínodo Romano, de modo solene.

Os termos referentes ao delito: "si deprehendatur a fide devius", são os mesmos do Decreto de Graciano e do Concílio de Constança, ao condenar Bento XIII.

Antes de ser norma jurídica, a disposição contém a doutrina sobre os "falsos profetas". É, por conseguinte, universal, independente de quem seja o delinqüente. Antecede, pois, a norma penal e flui da "natureza" do delito que separa da Igreja (Pio XII, Mystici Corporis).

Por conseguinte, tem vigência, como ensina Paulo IV, "absque aliquo iuris aut facti ministerio", o que é repetido pelo cânon 188 n.4: "sine ulla declaratione".

Em conseqüência, é uma dosposição perene e perpétua na Igreja pelo [poder do] Direito Divino, e não por mero direito humano de um papa.

O Padre Ceriani, no entanto, se situa entre aqueles que, ao dizer desse Pontífice, "intelligentiam Scripturarum pervertentes", querem abrogar o Direito Divino, derrogá-lo à perpetuidade, destruir a Tradição e converter em uma "pena" o direito humano mutável que flui "ex natura" do delito contra a Fé e contra a unidade da Igreja.

Ele pretende "interpretar" a Tradição enquanto a destrói, convertendo-a "ad suos sensus", "suae prudentiae innixus".

Não é esse o caminho da fidelidade Católica.

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